segunda-feira, 28 de junho de 2010

Do medo mútuo



‘Tenho medo’. Disseram juntos, em uníssono.

Ela, ar exausto. Lágrimas ainda marcadas na face alva, olheiras e aura de quem carrega uma história triste. Naquele rosto pálido, via-se um anjo caído. Sabe-se lá que tipo de sofrer arrancara sua inocência, deixando lacunas visíveis em seu olhar.

Ele, graça e leveza. Sorriso fácil, uma quase-malandragem que tentava disfarçar quaisquer danos. Mas afinal, tristezas todos temos... Um pierrô disfarçado em arlequim.

Ela sofria de uma dor chamada passado. O medo era latente em cada momento feliz. No fundo, cada instante de alegria era uma dolorosa e lacerante facada... A pobrezinha tinha em si apenas uma certeza: ‘tristeza não tem fim, felicidade sim’.

Ele era impetuoso, ainda conseguia crer. Crer no amor, numa história feliz, num enredo próspero. Recitava sonetos com ar de convicção: ‘em seu louvor hei de espelhar meu canto...’.

‘Tenho medo’. Os olhos gritavam quase pedindo socorro.

Ela não sabia jogar. Não tinha táticas, não conhecia golpes, estava desarmada. Restava auto sabotagem, e era sua única saída quando o medo atingia o âmago.

Ele gostava de cartas. Conhecia um ou outro truque, vencera certas batalhas. Ousava para não ficar de mãos atadas.

Ela curtia dramas. Achava bonito ver mocinhas soluçando ou amores se diluindo. Uma beleza tácita e real. Adorava músicas água com açúcar, valsava nas frases chorosas.

Ele não compartilhava desse tom dramático, mas conhecia alguns clássicos românticos, e eram suficientes pra embasar seu delírio.

‘Tenho medo’. Beijavam-se com lábios trêmulos.

E assim amaram-se... Um absorvendo o medo do outro, diluindo as dúvidas, convertendo as dores.

Querer é assim, imparcial. É desejar desde a maior qualidade até o mais profundo temor.

‘Tenho medo’. Repetiam simultaneamente... ‘Medo de perder você’.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Homicida


É como eu estava dizendo... Desde que ele apareceu e essa felicidade absurda começou a me rondar, não tenho mais paz.
Dei pra cantarolar Vinicius. Logo eu, decorando soneto.
Por isso quero que você o mate.

Faça com jeitinho, pra não doer muito. Ele é sensível e... Ah, quer saber? Faço-o sangrar. Devolva todas as dores que ele me fez sentir naquela noite em que prometeu ligar, mas esqueceu. Fiquei plantada ao lado do telefone, planejando um alô desinteressado que não desse pistas da minha ansiedade. Mas o filho da puta não ligou. E fui dormir imaginando se havia sido trocada por uma loira, ou quem sabe uma ruiva. Ele gosta de ruivas.

Se tenho certeza? Claro que tenho certeza. Quem é que consegue conviver com essa pressão constante, essa responsabilidade? Não dá, não dá.

No meio das nossas noites de amor, tenho ímpetos de fulminá-lo com as armas que essa relação me trouxe: minha ansiedade e meu ciúme.
O palhaço brinca comigo, sabe... É, ele ri da minha intensidade.

Ficam os dois rindo da minha cara, ele e a felicidade. Parecem cúmplices. Eles conspiram contra mim. Planejam me entorpecer mais e mais, pra depois fugirem juntos.

Como é que você não está entendendo? É óbvio. Ele apareceu do nada, encheu minha rotina de alegria, e ainda quer me convencer de que isso se chama acaso?

Olha, minha vida se baseia em buscar um amor perfeito, uma vida feliz. Ele me entregou tudo isso de bandeja. Por isso quero que ele morra e suma com os medos que trouxe consigo.

Ao mesmo tempo que o amo e sorrio feito boba, padeço de saudade.
É, saudade.

Sinto falta de buscá-lo por aí, de viver uma vida com lacunas. Ele me encheu de certezas, mas não sei lidar com isso.

Esse contentamento arrancou minha pose de comandante. Quem sou eu sem minha convicção?

Pra me sentir no comando, vale tudo. Vale até esmagá-lo. Isso mesmo. Vou colocar sobre os ombros dele toda a minha angustiante necessidade de tê-lo, até que ele desista. E aí vou usar aquele vestido preto que adoro, e minha expressão de abandono: ‘Eu estava certa. Você não suportaria qualquer coisa ao meu lado’.

Sim, pode matá-lo. E se conseguir, apague também nossas conversas intermináveis, e aquele sorriso estúpido que eu amo.

Ele merece padecer como padeço sempre que me imagino sem ‘nós’.

Doem todas as dores quando penso que, finda essa felicidade, vou perder o rumo. Então, que ela termine do meu jeito, sem dar a ele chances de me abandonar.

Não queira compreender. Apenas faça... Mate-o!

Por causa dele, já recorri aos livros de autoajuda, já frequentei o MADA*, já fiz cena de ciúme, já enjoei dessa idiota que ele criou dentro de mim. Chega!

Decidi e não volto atrás. Quero vê-lo estatelado, morto no chão da sala, cena do meu livro favorito... Do jeitinho que me enxergo quando minha imaginação masoquista desenha o fim da nossa história.

Cada vez que imploro pra que ele me deixe, é meu coração suplicando pra que ele assine um documento jurando ficar pra sempre.

É minha última palavra.

Coração, mate-o!



[Mais em: Confraria dos Trouxas]